top of page

   O Espectro da Casa

 

 

   De que é feito um espectro? De signos, ou melhor, mais precisamente, de marcas, isto é desses signos, nomes cifrados ou monogramas que o tempo risca sobre as coisas. Um espectro traz sempre consigo uma data, e é, assim, um ser intimamente histórico (Agamben 2009, 52).

 

  Existe uma relação estreita entre certas formas artísticas e algumas das principais características que distinguem o período em que essas mesmas formas são produzidas. No trabalho escultórico de Teresa Carepo que se encontra na Casa da Avenida em Setúbal, com o título Para Sempre e Mais um Dia, esta relação manifesta-se através de qualidades específicas como instabilidade, mutabilidade, e vulnerabilidade. Estas são qualidades reconhecíveis em grande parte da escultura que se produz actualmente e que nos permitem estabelecer uma relação com uma das condições que melhor define o tempo presente: o sentimento generalizado de incerteza. Contudo, se em tempos as qualidades acima referidas eram vistas como desfavoráveis à escultura, hoje podem ser consideradas como essenciais a esta prática. E, se incerteza é, antes de mais, um sentimento depreciativo, o seu potencial está em ser a única coisa que podemos realmente ter como certa. A ambivalência deste sentimento pode ser vista como um recurso para o futuro (Samimian-Darash and Rabinow 2015), ou como uma tecnologia para a produção de possibilidades (Pink et al. 2018, 3). Noutras palavras, o potencial da incerteza está na possibilidade de criar novas formas de entender, de imaginar e de transformar o mundo. Nesta exposição, a artista leva-nos à ‘experiência interior’ do lugar da casa. No entanto, ela não nos conduz a um porto seguro, leva-nos antes a um lugar de incerteza.

  “Entendo por experiência interior”, explica-nos o filósofo francês George Bataille, “aquilo que habitualmente se chama experiência mística: os estados de êxtase, de arrebatamento, pelo menos de emoção imediata. Experiência interior (...) responde à necessidade de pôr tudo em causa sem repouso admissível" (Bataille 2021, 11). De forma semelhante, Carepo pôe em causa o lugar da casa através da escolha sensível de materiais que não nos mostram o que é uma casa mas mostram-nos o espectro da experiência de uma casa, evocando o que há de mais sagrado e de profano neste(s) lugare(s). A casa aparece-nos então sob a forma de signos. Signos estes que, ao invés de se apresentarem como evidências do passado, interpelam-nos como enigmas a resolver. São eles marcas, inscrições, riscos - vestígios de gestos que testemunham a passagem do tempo sobre um conjunto de materiais por vezes encontrados outras vezes produzidos para esta exposição.

   O lugar da casa é, para esta artista, uma preocupação que se mantém e que se transfere de projecto a projecto. Em 2021, Carepo apresentou no Museu da Luz um trabalho que evocava a relocalização da Aldeia da Luz e o processo de transformação contínua a que uma casa está sempre sujeita, “equiparando as casas a corpos” (Matos 2022, 3). Agora, a abordagem de Carepo aproxima-se, mais uma vez, da de uma fenomenóloga à procura do que de mais essencial constitui este lugar. Aproveitando-se do facto de o espaço expositivo em si ter sido um espaço habitado e de ser ainda reconhecível a habitual estrutura de uma casa, a artista explora o lugar da casa não só como um lugar de transformação mas também como um campo de possibilidades: um espaço sobre o qual se pode intervir, especular, e re-imaginar práticas e estruturas normativas.

  Para Gaston Bachelard, fenomenólogo francês, a questão central que se coloca ao espaço da casa é a seguinte: “Através das lembranças de todas as casas em que encontramos abrigo, além de todas as casas que sonhamos habitar, é possível isolar uma essência íntima e concreta que seja uma justificação do valor singular de todas as nossas imagens de intimidade protegida?” (Bachelard 1989, 23) No trabalho escultórico que Carepo apresenta na Casa da Avenida não se evocam apenas a memória, a vivência ou mesmo a história desta casa e de quem a habitou. Juntamente com a memória desta casa - que regista nos vãos esconços das portas a resiliência dos materiais que superaram dois terramotos, nas paredes o correr da água do rio que em tempos chegava à sua porta, e no chão as marcas dos passos de várias gerações -  evocam-se também, as ‘lembranças de todas as casas,’ como Bachelard tão bem sintetiza. Lembranças essas que têm no seu âmago o gesto íntimo de proteger, de cuidar.

  A primeira escultura que encontramos nesta exposição concentra-se no gesto de unir duas peças de madeira - outrora pertencentes ao estrado de uma cama - envolvidas e unidas por uma faixa de gaze branca. Amparadas pela parede da casa, estas peças assumem figuras antropomórficas de estatura idêntica: não são homem e mulher, nem dois homens nem duas mulheres, nem são dois. São sim, e apenas, mais do que um corpo, pois um corpo é sempre dependente de outro(s) no que diz respeito a cuidar. Assim, esta peça representa um prelúdio para os vários gestos que se multiplicam em cada uma das esculturas aqui expostas. Gestos que remetem para acções como amparar, defender, (res)guardar, enroupar, assistir e apoiar. Contudo, não se deve olhar para este conjunto de gestos de forma inocente. Eles convidam-nos ao mesmo tempo a situar o cuidar do outro, o apego, a intimidade e a responsabilidade numa rede de afectos que também se estabelece com base em relações de poder desiguais. “Apesar das melhores intenções,” adverte a socióloga canadiana Nalinie Mooten, “o cuidador está sempre em condições de ditar as formas de cuidar; mais ainda, o cuidado é frequentemente definido como um acto generoso e altruísta” que deixa “pouco espaço para os destinatários de cuidados expressarem a forma como desejam ser cuidados” (Mooten 2015, 8 - tradução minha).

   As relações de poder que se estabelecem nesse seio íntimo que é a casa, são aqui evocadas através da organização dos materiais que formam cada um dos conjuntos escultóricos expostos: um molde de madeira serve para dar forma a um tijolo de cimento que por sua vez se torna mais firme que a madeira; uma chapa de chumbo é dobrada com a mesma leveza que é dobrado um lençol; um lençol é desfiado até perder consistência e opacidade; uma folha de parafina deforma-se sobre a dureza de uma barra ferro somente até ao ponto em que solidifica, ou seja, imediatamente antes de o ferro a cortar; uma estrutura de ferro sustém um toro de madeira que, por sua vez, apoia um tijolo de cimento que serve de base a um lençol; a lombada de um livro sobressai entre dois blocos de cimento e uma faixa de gaze branca, como se sobrevivesse por entre os escombros de um terramoto.

  Cada escultura é regulada através da tensão entre resistência e maleabilidade dos elementos que a compõe, assim como do acumular de camadas de materiais diferentes, arquitectando uma escala hierárquica que vai do material mais consistente ao mais vaporoso. Os vínculos que se estabelecem entre os materiais são, desta forma, vínculos tensos que, apesar de remeterem à lembrança de uma casa, não aludem exclusivamente à lembrança de um lugar familiar de protecção. Remetem também a um lugar de subjugação, de contenção, e de repressão. Porém, cada formação escultórica encontra o seu equilíbrio no momento exactamente antes do colapso, no momento em que se gera a incerteza mas também a possibilidade de ser outra coisa.

   Não é estranho que, para esta artista, seja relevante captar os estados mentais/psicológicos contidos nos materiais que prefiguram o espaço da casa. O facto de, no seu percurso, ter passado pela psicologia antes da produção artística explica a natureza da sua sensibilidade para transferência de aspectos mentais à materialidade das coisas. A experiência interior da casa - e a carga emocional/psicológica que este espaço contém - é-nos transmitida, como iremos ver adiante, também por via de um jogo entre presenças e ausências.

   Apesar de pequena, não passa despercebida uma escultura que se prende à parede por dois ganchos de ferro que sustêm um bloco de cimento moldado por um frasco de vidro. Uma vez removido o vidro, fica somente o espectro da sua forma onde o cimento se solidificou. O seu tamanho miúdo alude ao lacrimário, uma peça de uso pessoal proveniente da cultura Grega e que servia para guardar as lágrimas vertidas quando alguém próximo morre. Agora, o espaço vazio que daria lugar às lágrimas é preenchido pelo cimento que dá corpo à lembrança de todas as lágrimas que se choram, ou que ficam por chorar, por todos aqueles que morreram. Para Carepo, como podemos ver neste exemplo, o espaço é preenchido simultaneamente pela ausência e a presença de alguma coisa ou de algum afecto. Entende-se então que, para esta artista, mais do que o tempo, é o espaço que aviva a memória e que regista a duração concreta do sentido que damos às coisas.

   É com esta influência preponderante exercida pelo espaço que devemos também olhar para o vídeo que a artista expõe isoladamente num dos quartos da Casa da Avenida.  Por se tratar de uma imagem em movimento projectada sobre a parede, esta é uma peça com um carácter duracional diferente do resto das esculturas aqui apresentadas. Ainda assim, é para espaço, mais uma vez, e não para o tempo, que ela remete. O que vemos neste vídeo é o processo de fixação, de solidificação da parafina que passa gradualmente de líquida a sólida, de quente a fria, de translúcida a opaca. O interesse está no processo de transformação do material e com ele a memória que este carrega. Localizar essa memória ou esse corpo no tempo não é uma preocupação para Carepo. Mais urgente que a determinação de datas, de períodos ou de histórias, é a localização dos espaços de intimidade. E, mesmo quando esses espaços desaparecem, quando já não é possível ao corpo voltar a casa, regressa-se, pelo caminho da memória, ao espectro da casa. Entende-se, assim, o processo de solidificação da parafina como um sinal do desejo de fixação do corpo ao espaço. E não será esse desejo a essência de uma casa?

  A casa pode ser vista como um lugar normativo, onde se firmam modos de viver, costumes e rotinas íntimas. Mas, Carepo diz-nos que a casa também pode ser vista como um campo de improviso que dá lugar ao inesperado. Num quarto recôndito da casa encontra-se um piano. Este instrumento propicia um encontro com a música que, pela primeira vez, entra no trabalho de Carepo. Os acordes musicais do baixo de Ricardo A. Freitas e do piano de Ricardo Sá Leão ressoam pela casa em nota de improviso. Como um espectro sonoro da lembrança dos sons da casa - de todas as casas - a música vem, por um lado, preencher o vazio do silêncio, e por outro, dar forma ao esquecimento. A música chega-nos através de vibrações que se agarram ao encontro entre os vários elementos da escultura. Chega-nos, também, como uma narrativa fragmentada ou a memória de uma música que já não ouvimos há muito tempo - notas soltas, em pedaços, parcelas ou fracções de uma outra música. E isto diz-nos mais acerca do esquecimento do que da memória.

  Segundo o antropólogo francês Marc Augé, que se debruçou largamente sobre a relação entre estes dois aspectos da psique, “É preciso saber esquecer para saborear o gosto do presente, do instante e da espera, mas a própria memória tem necessidade de esquecimento” (Augé 2001, 7). A memória, esse jogo entre o que se lembra e o que se esquece, é um assunto que persegue psicanalistas, bem como artistas que se interessam sobre o passado. Para Augé, a memória ficaria rapidamente saturada se tivéssemos de carregar todas as lembranças, por isso, aquelas que ficam são sempre o produto de uma erosão pelo esquecimento: “As recordações são moldadas pelo esquecimento como os contornos da costa pelo mar” (Augé 2001, 26). Do mesmo modo, neste trabalho, a forma que se dá à memória é concretizada pelo trabalho subtil de remodelagem, pela resistência e fraqueza dos materiais.

  Como toda a arte que nos toca e arrepia, o trabalho de Carepo introduz o estranho pela via do familiar. Através da escultura, mas também do vídeo e da música, a artista completa um ciclo de espectros em torno da casa. E desta forma, compele-nos, enquanto visitantes, a pôr em causa o lugar da casa. Para sempre e mais um dia, é assim o título/tecto deste trabalho feito a partir de continuidades e descontinuidades, certezas e incertezas, lembranças e esquecimentos.

  Sara Magno

   SEMPRE FOI ASSIM

 

   Teresa Carepo expôs na Casa da Avenida, em Setúbal, esculturas que se encontram todos os dias nos dias das nossas vidas. É enternecedor perceber como a artista interpreta o que vive e o que observa. Coisas simples, dirão alguns. Simples? Nada há de mais complicado do que descobrir a simplicidade do dia-a-dia. Observamos o que sobra sem a informação que nos fornece outra dimensão da realidade. Olhamos para essa realidade com os olhos fitando o horizonte sem percebermos que podemos contemplar o melhor sem a necessidade de tentar olhar mais além. O que está além do que sentimos está por vezes debaixo do nosso olhar. Teresa Carepo recria ambientes que nos pertencem, que estão sempre perto, com a subtileza do ourives, ou com a perícia do sociólogo. A arte da escultora encontra o seu objecto em momentos de puro apuro formal. A sofisticação de um olhar que molda sofisticadas peças de encontro e prazer. Que bem vindas são estas peças ao nosso conforto visual.

   José Teófilo Duarte

bottom of page