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Memoriais à própria construção

Sara Antónia Matos

 

Teresa Carepo é escultora e trabalha em predominância os materiais escultóricos, filiação disciplinar que não é irrelevante, como adiante se verá.

De acordo com a linguagem prévia e as preocupações da artista, o projeto para o Museu da Luz, apresentado em 2021, foi desenvolvido em torno das questões da memória e do esquecimento, do sagrado e do profano.

O museu está localizado na aldeia da Luz, no concelho de Mourão, Évora, e foi fundado em 2003, reunindo informação, entre a qual constam materiais como fotografias, vídeos, coleções etnográficas e arqueológicas, sobre a relocalização da aldeia da Luz.

Como se sabe, a transição para a nova aldeia foi complexa porque um lugar nunca se perfaz apenas da sua materialidade física e geográfica. Um lugar, ao contrário de um sítio, como explicou o sociólogo francês Henri Lefèbvre, autor de La production de l´espace, é composto pelas suas componentes físicas e antropológicas, práticas e vivências, envolvendo um intrincado de relações que fazem do espaço um «lugar habitado».

Para este autor, assim como para o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, na sua Phenomenology of Perception, o espaço é inscrito de sentido e simbolizado, transformando-se então num «lugar antropológico».

Significa que para habitar um espaço é necessário criar o lugar do sagrado e do espiritual. Este permite às pessoas organizarem-se e organizarem o secular, podendo esse processo implicar, como aconteceu na relocalização da aldeia da Luz, transladar os mortos e simbolicamente as «raízes de pertença», antes de se mudarem os vivos.

É neste interstício de relações intangíveis e reconstruções espirituais que Teresa Carepo vai operar e procurar materializar através dos meios escultóricos. O projeto ocupou a artista mais de um ano e meio, entre pesquisa material e documental, tendo a mesma estado em contacto direto com as pessoas da aldeia da Luz e passado algumas temporadas nas Oficinas do Convento, em Montemor-o-Novo, onde ensaiou e realizou componentes das peças.

Durante o processo de investigação tomou conhecimento de metodologias de construção vernaculares aplicadas na edificação das casas da antiga aldeia, feita em taipa, indo as casas sendo ampliadas ou acrescentadas à medida das possibilidades económicas dos seus proprietários. A artista quis evocar este processo de transformação contínua, equiparando as casas a corpos.

Na verdade, as casas são corpos, corpos habitáveis, que sofrem metamorfoses, transformações, acrescentos, reconfigurações, reparação, perda de qualidades, tal como os corpos humanos, muitas vezes envolvendo processos de luto e de dor.

A simbiose entre corpo e casa, seus canais e espaços de passagem, entradas de ar e de luz, mas também a existência de um recetáculo interno e uma casca de proteção, é de tal forma evidente que, por vezes, uns se tornam espelho dos outros: as casas dos corpos humanos e estes daquelas como se absorvessem qualidades alheias e as embebessem em si, nos seus próprios tecidos, carnes e camadas.

As esculturas de Teresa Carepo para este projeto reportam precisamente ao esforço e ao desgaste físico dos corpos, exigidos na transformação das casas (da aldeia da Luz ou de qualquer outro lugar), mas também à dimensão espiritual dos corpos (do seu enquanto escultora e do cidadão comum). Esta dimensão incorpórea está implícita em processos de perda e dor, inerentes a mudanças bruscas e respetivas necessidades de readaptação – aspecto que a arte pretende captar.

Tudo isso é evocado nas esculturas da artista, seja através das formas, corpos jacentes, que se adaptam e dormem uns sobre os outros, seja através dos materiais referentes à arquitetura de tradição vernacular, como a terra crua (adobes e moldes ou cofragens de madeira) ou outros ligados à construção: madeiras, cimento, tecidos, metais.

Esta associação ao lugar antropológico e espiritual, aos corpos de carne e osso, suas vivências e práticas, é posta em evidência em peças como a que ostenta um saco de papelão sobre a sua laje. É um saco de farinha de trigo, para fazer pão, que a artista colheu na aldeia, depois de saber que era um recurso usado para substituir o reboco quando os proprietários não tinham verbas suficientes para o fazer. Curiosamente, além das matérias usadas serem provenientes do lugar (a terra) e poderem a ele voltar e desfazer-se, os instrumentos utilizados na feitura de algumas obras, como os moldes para os tijolos de adobe, são depois convertidos em elemento escultórico. Em algumas peças esses elementos levantam a escultura acima do chão e são assumidos como parte integrante da sua estrutura. Não são, portanto, pensados como assessórios juntos a posteriori ou bases complementares, dispensáveis ou substituíveis por outras quaisquer.

A artista faz dos instrumentos de trabalho parte integrante das peças, que então se perfazem de camadas, memórias e memoriais da sua própria construção. Neste sentido, Teresa Carepo é de facto escultora, pois além das questões que o seu trabalho possa trazer, transporta e evidencia sempre a filiação desta artista ao seu campo de ação: o escultórico.  

Talvez mais do que em qualquer outra série anterior, no conjunto de peças exibidas no Museu da Luz há uma coincidência exímia entre forma e conteúdo, dizendo-se e falando ambos em simultâneo. Esta série é exemplar no que toca a produzir uma meta-reflexão sobre o campo da escultura, tão específico quanto amplo em possibilidades. Cada peça, nesta exposição, corresponde a uma memória de uma casa, de um corpo, do tempo e da transformação que por eles passou. Desse modo, o tempo de secagem das peças realizadas em adobe (terra molhada), cerca de um mês e meio, ou em cimento, aludirá também ao tempo de inscrição de uma «perda», da dor e sua superação.

 

Os materiais a que a artista recorre são iminentemente simbólicos, desde a leveza e transcendência espiritual da cor, como é o caso da cal, que além de luminosa contém um valor desinfetante associado à pureza, ou da terra que, ao contrário da cal, comporta um valor de fertilidade associado à nascença e decomposição.

O seu trabalho, pelos suportes e materiais a que recorre, inscreve-se inequivocamente no campo da escultura, por vezes parecendo desafiar as suas condicionantes intrínsecas, como se pudesse superar o peso dos materiais, tornando-os leves e impalpáveis.

É de relembrar sobre isto uma das suas peças mais transparentes, apresentada no espaço da Appleton-Associação Cultural, em Lisboa, na exposição com curadoria de Claúdia Ramos, onde o espectador é deparado com um lençol de pano branco, verticalmente suspenso, ao qual foram subtraídos pela artista vários fios, até o mesmo ficar com o aspeto de uma gaze. A peça alude aos sudários e, sem disso aparecer mancha, ao sacrifício e à penalização que a artista se submeteu para concretizar a peça. A sua feitura exigiu uma subtração de fios milimétrica que deixa no lençol uma zona transparente, ainda mais permeável à passagem da luz.

Da mesma subtileza são as peças que a artista compôs com recetáculos de madeira e metal, contendo parafina, dobrando e moldando esta como panos flexíveis, ou talvez uma massa translucida, semitransparente, em alguns momentos alusiva ao amassar do pão – uma série apresentada na companhia de Francisco Tropa, também com curadoria de Claúdia Ramos, no Museu de Etnologia em Lisboa, da qual uma peça foi adquirida para a coleção da Câmara Municipal de Lisboa.  

Das peças que contêm panos, ou acomodam sudários, não podem excluir-se as da exposição na galeria Liminare, na Junta de Freguesia do Lumiar, em Lisboa, onde a artista trabalhou toda uma série alusiva à perda e à rememoração.

Este périplo por alguns momentos do percurso da artista serve para traçar, não apenas a prossecução conceptual e temática da sua obra, mas também a sua consistência formal. As peças, não só as que apresentou nesta exposição do Museu da Luz, mas também as precedentes, de grande coerência entre si, são essencialmente de forma tumular. Elas aludem a recetáculos, jacentes, onde, todavia o corpo não está. Alude-se à sua presença, à sua passagem, à sua perda, à sua luz. Um instante fugaz. Um arrepio. Qualquer coisa passou e já não está.

Também um memorial à sua própria construção.

 

Março 2022

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