TERESA CAREPO
ATIRAR PEDRAS À LUA
Deve-se ser leve como o pássaro e não como a pena.
Paul Valéry
O maior receio da escultura é cair. Esse sentimento é-lhe constantemente avivado pela ditadura do peso que governa o espaço que habita. Em resposta, ela tenta manter-se o mais quieta possível. Isso não significa que a escultura seja estática ou inactiva, embora ela tenha nascido da pedra.
Uma história da escultura começa invariavelmente pelo corpo duro, jazente, imóvel. “O cadáver foi para os homens o primeiro objecto.” (Michael Serres). Assim, a natureza funerária da escultura faz proliferar as formas e os usos. Sendo o corpo do homem o seu referente, ele influencia a sua posição; de pé a escultura assume-se como monumento, deitada ela é túmulo. De um modo ou de outro, ela faz-se da pedra como metáfora do corpo inerte, fulminado pela sedução da Górgona. É o mito da petrificação que gera o equívoco da inércia como condição da escultura. Em boa verdade, a imobilidade na escultura só se pode referir ao olhar opaco que vislumbra nela apenas a representação. Outro olhar, desinteressado da atração do conceito, descobre no objecto a sua vitalidade, a sua emoção. É nessa altura que nos apercebemos que mesmo a pedra, o penedo, move-se no tempo milenar. Desliza, enruga, dobra, ergue-se. Os movimentos tectónicos mostram-nos que mesmo aquilo que nos parece mais fixo e imutável está, afinal, em metamorfose. Mas a mobilidade da escultura não é orogénica. A sua actividade relaciona-se com o seu temperamento e a sua integridade. É esta atitude e sobrevivência que dá à escultura de Teresa Carepo um carácter performativo. E essa disposição é transversal a todos os materiais e não apenas à pedra.
Duas réguas de madeira completam um vão quadrado e desenham com a parede e o chão uma moldura simples. A espessura fina das tábuas e a discrição da parede e do chão tornam esta moldura bidimensional, uma linha que demarca no espaço da sala um plano de imagem. Este plano, este ecrã, toma para seu fundo o branco das paredes e o cinzento do chão e nele, no canto mais exposto, suspende-se uma mancha escura, uma gota pesada. Nesta superfície transparente, sugerida pela simplicidade da moldura e fundo bicolor, que aproxima a escultura do desenho, toma gravidade a afirmação, ainda que modesta, desse elemento escuro. A sua sobriedade não se refere nem à escala, nem à forma, mas à semelhança tonal dos diferentes elementos, que, dessa forma, se confundem numa mancha única. É uma sombra. Permanece assim a bidimensionalidade. Mas, à medida que nos aproximamos, tudo ganha peso, textura, humidade. A estrutura de madeira perde extensão e linearidade para exibir-se agora como matéria expressiva. São tábuas velhas, empalidecidas pela usura e secura, manchadas pelo ferro. Na tábua horizontal está então presa uma cinta elástica que suspende um empilhamento de vários materiais de cor cinzento grafite: uma folha de chumbo dobrada, uma pequena placa de cimento quebrada e uma pedra de calçada. Esta “sombra” traz o volume, a compactidade e, com ele, o objecto. Saímos do plano para encontrar a matéria, o corpo e o espaço.
Há neste corpo escuro uma actividade líquida intuída pela imagem de um movimento oscilante e elástico quase imperceptível. Pesa e desce, pinga, com estrondo: chumbo, cimento, calcário. Inversamente, também sobe. Resiste ao peso, mantêm a delicadeza: as dobras moles, barrocas, da folha de chumbo permanecem imperturbáveis à pressão do cimento e da pedra. Concomitantemente, a energia mecânica do esforço musculado da cinta elástica para suportar o peso dos elementos, mimetiza, ainda, o movimento da balança, do prato da balança, hesitante, para cima e para baixo, até alcançar o equilíbrio.
O equilíbrio é a imagem pacificada da hesitação. Não é imagem da igualdade. Para descrever o equilíbrio recorremos, de imediato, ao movimento do nosso corpo apoiado num só pé, fiel da balança, em esforço para ficar imóvel. Mas a imagem deste corpo equilibrado não é simétrica. Fazer justiça não significa equidade . Significa esforço, virtuosismo sem conflituosidade. O confronto das forças tem de ser invisível se não aparece a queda. Ora, esta arquitectura elástica, apesar do desafio compositivo não parece fazer perigar a escultura. Ao se posicionar ao canto da estrutura, desloca o centro de gravidade da obra; todo o peso da escultura é direcionado para a tábua vertical enquanto a outra, horizontal, num movimento de bailarina apoia-se na parede como num exercício na barra. Este empilhamento assume ainda, no conjunto da obra, um pacto de estabilidade onde não pode haver nem um qualquer pequeno desentendimento entre os elementos, muito menos uma acomodação no tempo. A escultura não se pode mexer, senão, arrisca-se a colapsar. Todavia, como referido em cima, não existe aqui inércia. Pelo contrário, além do movimento gravítico, há também a irresolução da borracha elástica, o apoio na parede, a resistência do chumbo, a circularidade do vão e, por fim, junto à parede de apoio, o reflexo luminoso de uma lista branca pousada sobre a verga de madeira. O corpo da escultura é dinâmico, é um sujeito prático e ágil. A actividade natural da escultura é a pedra de toque da obra de Teresa Carepo. Um jogo de direcções, inclinações, equilíbrio, pressão, peso e leveza, transparência e opacidade, integridade e pulverização, velocidade, transitoriedade. E esse jogo aprende-se da tentativa e do erro: do tombar e do partir, pesar e vergar, deslizar, amolgar. O erro também é construção (Matilde Campilho). E o gesto construtivo é repetitivo: voltar a pôr de pé o que caiu, contrapesar, torcer, polvilhar.
A escultura de Teresa é, por isso, muito precisa. Mas esta precisão não é tecnológica, industrial, não se depreende de uma imagem límpida, antes, é uma precisão tosca que surge do horizonte vago que Teresa fareja em volta e, peregrinamente, vai encontrando e se apropriando dos materiais que manipula: tábuas, barrotes, tijolos, caixas; acentuando atributos, valores, defeitos, vícios. O que é preciso na sua escultura é o insistente trabalho sobre o corpo escultórico, da sua substância, dependendo por inteiro da agilidade desse corpo, dos seus movimentos no espaço e essa atenção sobre as particularidades e acções da matéria é a linguagem da escultura auto-reflectindo-se. “O objecto, é certo, acusa o golpe.” (Francis Ponge).
Ora, sobre a tábua horizontal junto à parede repousa uma prancha branca de gesso que replica a luminosidade da parede. Na verdade, o próprio gesso branco é luz vinda do fogo. A luz domina a obra: uma moldura, um vão aberto e um brilho. Há também sombra, mas ela não pertence propriamente à obra. A sombra aparece da mancha cinzenta suspensa no canto do vão. Porém, a compactidade deste elemento sucumbe à transparência do vazio que a moldura descreve. Talvez por isso, esta escultura pareça tão bidimensional.
O halo branco na parede presta-se facilmente a uma adjectivação mística, à interpelação do sagrado. Essa evocação não é estranha à artista e não é também repudiada por ela porque há uma sedução pelos materiais que ela encontra na cidade, no atelier, que não é inteiramente compreendida, permitindo que o fascínio forme o seu horizonte de imagens. No entanto, para a artista, o branco do gesso é matéria e espaço. Aliás, o gesso na obra de Teresa Carepo não é molde, nem soldado da tradição da escultura, antes, é branco. Branco não apenas luminoso, também não atmosférico, mas branco espacial. Espaço do desejo por excelência, porque pede ansiosamente para existir ao toque da marcação. E o que é que o marca? Pó, sujidade, a sombra da sua própria liquidez, mas também o estalar da sede. Cada fenda, mossa, risco, mancha insinua o branco, dá-lhe significado, torna-o pleno, com direito próprio. Porém, para contemplarmos o branco temos, também, de deslocar a nossa atenção do hábito do desenho. Não é mudar o ponto de vista, mas considerar outros e, sobretudo, ser indisciplinado. “A leveza não tem a ver com plumas, mas com a aprendizagem do que é voar, do que é ascender, do que é desprender-se para ser. A leveza é uma escolha” (José Tolentino Mendonça).
A leveza tem a ver com confiança que, no trabalho de Teresa Carepo, se revela na exactidão dos materiais, ora encontrados, ora produzidos. Os materiais tomam posse de todo o sentido da escultura e as acções por eles empreendidas tomam parte numa linguagem sem qualquer adjectivação, daí a escultura de Teresa parecer aparentemente indecifrável. A sua arte põe em evidência a mudez própria dos materiais e coisas que não poderão ser ditas. Recusa o peso da ganga conceptual. Tal não significa que esta escultura não tenha força figurativa: uma gota, um vão, um exercício de ballet. Mas esse encantamento não obscurece o objecto. Nada é obscuro porque os elementos limitam-se a ser e a agir de modo natural: um tijolo, uma pedra, tecido, madeira, que seguram, levantam, empurram, encostam, envolvem. São sinais nas suas condições originárias a que nos habituámos a não reconhecer. Retornar a eles parte da disciplina de auto-reflexão. A indecifrabilidade da escultura de Teresa Carepo tem mais a ver com a nossa cegueira interpretativa do que da falta de sentido da obra. Os objectos insinuam-se, aliás, estão aí, diante de nós, na sua máxima visibilidade, expostos à nossa fome arqueológica que, na pesquisa dos sinais originários, reinicia o conto. Não é um defeito, nem um fracasso daquilo a que se chama modernidade, antes, é o reconhecimento da irresistibilidade do encantamento mágico da arte.
Joana Batel